sábado, maio 17, 2014

Solar

O Sol e eu conversamos hoje, sentados à beira da piscina. Uma conversa suave e impregnada de sentimento. Prosa de dois grandes amigos que há tempos não se viam. Falei sobre minha paixonite pela escuridão da noite e paranóias adolescentes. Ele riu ternamente, acarinhou-me a cabeça e disse pra eu ter calma. Chorei em silêncio enquanto ele me contava sobre a fugacidade da vida e da desconsideração para com o amor nos dias atuais. Depois almoçamos e fizemos a sesta juntos. Calados e em paz, como convêm a dois amigos. Ele dormiu no meu coração, deixou um quarto bem quentinho lá pra mim. "Tava tudo bagunçado, algumas salas estavam frias, outras destruidas. Mas eu dei uma organizada, meu amigo. Fique bem, a escuridão pode ser destruidora.". Disse ele, indo embora, rumo ao horizonte...

Reticências

A noite assobiava com um chuvisco fino a rua. Fiquei parado em frente a casa dela, entre ansioso e pensativo. Ela vem. As vezes é bom ser absorvido por essa sensação de não conseguir verbalizar o que se sente. Como se não fosse possível botar em palavras a beleza dela naquele momento. Tão linda e tão simples! Revisei todo seu rosto com meus olhos, beijei a face levemente e fui conduzindo o carro. Chegamos a praça do canavial, a qual tinha um mirante para o mar. O céu nos presenteava com algumas estrelas e a chuva já parara. Acarinhei seus cabelos com uma suavidade de escultor:
- Hoje eu sou todo curiosidade.
Ela sorriu, baixou a cabeça um pouco desconcertada:
- Nós vivemos entre feras!
- O leão é o meu animal favorito.
- Acho que o meu é o guaxinim.- e deita a cabeça no meu ombro.- Por que estás curioso?
- Teus lábios reticentes...
Ela sorri novamente, turva. Mira meu rosto, me consome. Não lembro muito bem onde estávamos, se no carro ou fora dele, quando o beijo aconteceu, mas eu guardei aquela noite, aquele assobio, e aquele céu de estrelas no bolso, perdido por entre florestas e rugidos indecifráveis...

Alguma Coisa

Ele: Penso que do jeito que o mundo tá é até difícil você acreditar nas coisas falo. Pareço cafajeste...
Ela: Não te minto. Tuas palavras são piegas.
Ele: Acreditas que eu sempre tive medo de parecer ridículo? O pior é que nem realmente entendo minhas sensações.
Ela: Sensações não devem ser entendidas. Cadê teu coração?
Ele: Esqueci por um tempo. - passa a mão no rosto dela e dá um sorriso discreto. - Tua imagem é tão suave aos meus olhos...
Ela: Ontem escutei o "Abbey Road" dos Beatles, todo, tomando um vinho. Lembrei de ti...
Ele: Nem parece que te conheço há duas semanas! Gosto de Beatles. E de Led Zeppelin também. Ontem escutei BB King.
Ela: Acreditas que pode haver atração e um despertar de um sentimento com tão pouco contato? Com essa nossa parca troca de idéias?
Ele: Tuas indagações me fascinam... Por que não? Basta a carícia que fazes dentro de mim. Na verdade, desisti de tentar compreender.
Ela: Quer mais um pouco de vinho? - e dá um gole no gargalo da garrafa.
Ele a mira por uns instantes. Viaja por várias paisagens naquele olhar, apaixonado, num desespero contido dos sentimentos avassaladores.
Como numa surpresa, dessas pegadinhas que o cotidiano solta vez por outra durante a vida, "Something" começa a tocar ao fundo.
Ela sorri discretamente, fecha os olhos, ergue levemente o vinho e deixa o cabelo dançar sobre a sua face. A música reverbera na mente dele: "...something in the way she moves...".
Ele é absorvido por um frenesi tão poético e puro, impregnado de uma admiração apaixonada. Fica estático, saboreando cada gole daquela imagem.
Ele: Preciso te falar uma coisa, mas não sei se devo.
Ela: Fala.
Ele: Eu não deveria. - toca as mãos dela, suavemente...
Ela: Fala. Simplesmente fala.
Ele: Eu te acho sensacional!
Ela sorri e a face cora levemente. Ele a encara tão terna e profundamente que palavras mais complexas, discursos mais elaborados, não são necessários. Ela entende.
O outro: Eita, que o banheiro está com uma fila imensa!
Eles se olham, disfarçam o olhar e tentam dar vazão àquela volúpia que ainda atravessava seus corpos.
Ele: Bom, vou ter que ir, tenho um aniversário ainda. Prazer ter encontrado vocês dois. - ainda a encara com uma doçura clandestina. - Tchau...
E vai embora. Deixa nela um olhar reticente, de uma distância musical e misteriosa. Ela sorri cinzenta e beija o rosto do outro. A música a tocar ao fundo já era outra, porém aquela conversa atravessava todo o seu universo.